04. Patrimônio e Memória Cultural

(Texto adaptado do texto base da I Conferencia Nacional de Cultura –MINC/CNC) Os primórdios: a ação federal A Constituição de 1934 introduziu, pela primeira vez, a prerrogativa do Poder Público no que diz respeito à proteção dos bens culturais brasileiros. Coube a Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde Pública de 1934 a 1945, organizar um sistema eficaz de proteção aos bens culturais brasileiros. A seu pedido, em 1936 o escritor Mário de Andrade concluiu o anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional – hoje Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, criado em 13 de janeiro de 1937 com a promulgação da Lei nº 378, que dava nova organização ao então Ministério da Educação e Saúde Pública. O Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organizou “a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”, como legislação genérica e abrangente, aplicada nesses quase 70 anos, estruturou jurisprudências precursoras no campo da preservação ambiental, urbana e rural, das paisagens culturais e do patrimônio imaterial. Entre outros dispositivos legais relacionados com os bens de interesse cultural, destacam-se ainda a Lei nº 3.924/1961, que atribui ao Poder Público, a guarda e proteção dos monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no país, conhecidos ou não; a Lei nº 4.845/1965 , que proíbe a saída, para o exterior, de obras de arte e ofícios produzidos no país até o fim do período
monárquico; e o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que dispõe sobre o registro
do patrimônio cultural imaterial, ou seja, voltado para a preservação dos lugares, saberes, formas de expressão e celebrações que identificam os grupos formadores da sociedade brasileira. A evolução da ação institucional no país: diversidade, complexidade e  concorrência A partir dos anos 70, o processo de redemocratização, a emergência da pauta
ecológica e das agendas locais e as políticas de preservação cultural da União passam a
se desdobrar no surgimento de movimentos sociais e de instituições estaduais e municipais que constituem hoje um verdadeiro, porém informal, sistema de patrimônio cultural, com legislações infranacionais e instrumentos de fomento que corroboram o desafio de preservar o patrimônio cultural brasileiro. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu  claramente em seus artigos 215 e 216 a competência do Estado de garantir o exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura, valorizar e incentivar a produção cultural e preservar o patrimônio nacional, inclusive o das várias etnias e correntes civilizatórias que compõem a sociedade brasileira. Assim, a Constituição de 1988 ampliou o conceito de patrimônio cultural, aumentando a abrangência dos bens que o constituem e repartiu a responsabilidade legal de sua preservação entre as três instâncias do governo. E, mais importante, consagrou o princípio de participação da sociedade em todo o processo da
preservação. Organismos não-governamentais e o Ministério Público vêm ampliando esse campo de atuação sobre o patrimônio, contribuindo para a configuração de outros olhares e o estabelecimento de novas práticas que, em síntese, estão enriquecendo a ação desenvolvida sobre esse patrimônio cultural. Assim, aquela ação isolada até então desenvolvida pelo Iphan, vem ganhando densidade, com a incorporação de novos agentes governamentais e não-governamentais. Nesse processo, o avanço exigido no campo da preservação do patrimônio cultural, ultrapassou o universo da “pedra e cal” para incorporar os aspectos intangíveis da cultura às políticas de preservação, tanto no que diz respeito à
salvaguarda do patrimônio imaterial quanto ao respeito aos sentidos atribuídos pela população aos bens patrimoniais. Isto vem implicando a incorporação de conhecimentos relevantes para a construção e gestão desses novos objetos e na construção, a partir desses conhecimentos, dos instrumentos necessários à implementação das ações correspondentes.
Para além da própria diversidade conformada no conjunto de bens patrimoniais reconhecidos, a esse conjunto se lhe confere complexidade no momento da ação sobre ele, diante de práticas institucionais que não podem mais desconsiderar as competências de cada agente que resultam, em princípio, numa gestão concorrente do patrimônio cultural. Nas últimas décadas, os movimentos preservacionistas e ambientalistas ganharam força, estimulando a criação de importantes espaços e formas de participação política. Segmentos e categorias sociais não-hegemônicos, tais como populações indígenas, afro-descendentes, de imigrantes, passaram a ser reconhecidos e legitimados como sujeitos de direito, em especial no que diz respeito às prerrogativas culturais e, particularmente, no âmbito das ações de patrimônio. Entretanto, reconhece-se que ainda estão sendo construídos os caminhos pelos quais vêm se ampliando e tornando-se efetivos esses direitos.
Política cultural para o campo dos museus. Lidar com museus requer a capacidade de saber tocá-los e compreendê-los como casas que estão no presente, dialogando com passados e futuros. Um sistema de gestão da cultura tem na criação dos conselhos, dos fundos e mecanismos de incentivo e das formas de participação democrática e descentralizada os fundamentos e desafios para a implantação de políticas públicas que tenham a intenção de lançar raízes na vida social.
As ações empreendidas pela Política Nacional de Museus têm conseguido firmar
o campo museológico como terreno estratégico no conjunto das políticas públicas de
cultura. Os museus conquistaram notável centralidade no panorama político e cultural do
mundo contemporâneo; eles deixaram de ser compreendidos por setores da política e
da intelectualidade brasileira apenas como casas onde se guardam relíquias de um certo passado ou, na melhor das hipóteses, como lugares de interesse secundário do ponto de vista sociocultural e passaram a ser percebidos como práticas sociais complexas, que se desenvolvem no presente, para o presente e para o futuro, como centros (ou pontos) envolvidos com a criação, comunicação, produção de conhecimentos e preservação de bens e manifestações culturais. É possível supor que os museus estejam conquistando um novo lugar na vida social brasileira. Os desafios atuais da preservação: questões pendentes e candentes Apesar das inúmeras dificuldades relacionadas com a carência de pessoal e
infraestrutura inadequada, na busca de preservar o patrimônio cultural brasileiro, premidas por tantas circunstâncias, as instituições que vêm desenvolvendo ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro, como o Iphan e os diversos órgãos estaduais e municipais, empenham-se em manter a respeitabilidade que construíram ao longo de suas trajetórias. Neste momento, a gestão cultural põe em prática uma compreensão nova e abrangente da cultura, como peça-chave e indispensável na estruturação do país e da sua identidade. Neste momento ímpar para a consolidação e ampliação das instituições e organizações da sociedade civil, responsáveis pelo patrimônio cultural, busca-se recuperar a postura inovadora de suas origens. Nesta conjuntura muitos desafios se apresentam, entre eles, destacam-se os seguintes:
1 – Garantir a ampliação do objeto e a democratização do público-alvo: trilhar tal percurso e construir acessos adequados é um desafio importante, tanto para o Estado, quanto para a sociedade, porque provoca mudanças radicais, sobretudo nas instituições públicas envolvidas, que passam a se relacionar sistematicamente com segmentos até agora excluídos das ações de preservação. Cria-se a necessidade de construir um novo modo de relacionamento com o público, mais participativo e envolvendo mais diretamente segmentos sociais diferenciados em termos étnicos e socioeconômicos. E, além disso, altera-se radicalmente a geopolítica do patrimônio, trazendo à luz, regiões mais tardiamente incorporadas à vida cultural do país como um todo, assim como os territórios localizados nos interstícios das áreas que apresentam concentrações patrimoniais já consagradas.
2 – Valorizar o sentido político do patrimônio: aspecto inescapável da problemática contemporânea do patrimônio é o sentido legitimador que a atribuição de valor  patrimonial, operada pelos agentes governamentais por meio do registro e do tombamento vem adquirindo na sociedade brasileira. A proteção de determinado bem enquanto patrimônio nacional repercute positiva e eficientemente no enfrentamento das diferenças sociais e culturais, como é o caso das ações afirmativas, em razão de seu aspecto legitimador das referências culturais dos vários grupos constitutivos da sociedade brasileira. Assim, ao reconhecer referências culturais de grupos sociais até então não contemplados no conjunto de bens culturais protegidos ou salvaguardados, espaços de afirmação social são constituídos, sob a chancela do Estado, tornando mais democrático e plural esse conjunto de bens e legitimando processos e produtos sociais até então não valorizados pelo Estado e pelo conjunto da sociedade brasileira.
3 – Considerar o patrimônio como riqueza: Na esfera da economia, vale lembrar, que a preservação do patrimônio em nível federal consagrou pioneiramente, por meio do tombamento, o primado do interesse público sobre a propriedade privada, ou seja, o princípio da função social de propriedade. Desse ponto de vista, também, há que se ressaltar a participação do patrimônio na construção do valor cultural agregado, tanto no que diz respeito ao mercado imobiliário, como ao comércio de obras de arte e antiguidades, e no desenvolvimento de bens e serviços. O valor cultural associado ao patrimônio vem se tornando um importante componente do valor de troca, tanto em relação a bens de consumo, quanto aos serviços turísticos e de outros setores da economia que se tornam cada vez mais “culturais”. Nesse processo de transformação de diferenças culturais em diferenciais de mercado, e numa conjuntura em que as tecnologias de comunicação e de transporte tendem a comprimir e anular as distâncias físicas, o mundo se torna cada vez menor. Nessa conjuntura, as diferenças e singularidades tornam-se recurso estratégico para o desenvolvimento econômico, político e social.
4 – Responsabilidades concorrentes: o Iphan, além de construir o seu próprio espaço e legitimidade institucional, inspirou e orientou a formação de instituições estaduais e municipais em diversos pontos do país. A existência dessas instituições, assim como a inclusão da preservação nos planos diretores municipais, configura hoje o que poderia ser designado como “esfera pública institucional do patrimônio”. Essa tendência torna progressivamente viável estruturar esse campo como domínio de responsabilidades concorrentes dos entes federados, conforme estabelece a Constituição Federal, mediante a constituição de um pacto federativo voltado para a construção da gestão compartilhada do patrimônio cultural. Tarefa urgente é, portanto, identificar possibilidades e responsabilidades específicas de cada uma das esferas do poder público, no sentido de construir e implementar mecanismos e instrumentos de gestão eficientes, eficazes e efetivos de articulação e concertação entre a União, os estados e os municípios, assim como ampliara interface com a sociedade.
Considerados esses desafios, podem ser explicitadas para discussão, com vistas à consolidação de uma política de patrimônio cultural para o Brasil, as seguintes diretrizes:
1 – Valorizar a diversidade cultural existente no país, em termos territoriais e sociais;
2 – Identificar e proteger – de forma abrangente e sistemática – os vários tipos de bens culturais, sejam eles de natureza material ou imaterial;
3 – Estimular a transmissão e garantir o acesso das atuais e futuras gerações aos recursos patrimoniais;
4 – Promover a sustentabilidade econômica, física e social das diversas formas de apropriação dos bens protegidos, especialmente por meio do monitoramento e, se possível e adequado, da regulação e gestão da inserção dos bens patrimoniais no mercado;
5 – Construir uma gestão compartilhada do patrimônio cultural brasileiro, fortalecendo os elos que articulam as instituições públicas entre si e à sociedade civil;
6 – Estimular a inclusão da cultura e do patrimônio no planejamento urbano e ordenamento territorial, assim como nas políticas e programas de desenvolvimento humano e social;
7 – Defender os direitos civis e culturais dos vários segmentos da população no que diz respeito à esfera patrimonial, inclusive o de continuar residindo nas áreas requalificadas pela preservação. Para a construção de uma política nacional de preservação do patrimônio
cultural, deve-se ter presente as condições de sua implementação, que incluem, entre
outros:
1 – Aderência à agenda do Governo e às demandas da sociedade, o que pode propiciar, no que couber, a complementação da legislação existente.
2 – Construção de capacidade institucional e organizativa, dentro de uma estratégia de desconcentração e de descentralização administrativas;
3 – Adequação de recursos financeiros e de pessoal à missão das diversas instituições envolvidas;
4 – Fomento à pesquisa e à difusão de informações sobre o patrimônio cultural por parte do Governo;
5 – Fomento à produção de conhecimento e ao desenvolvimento técnico dos procedimentos de preservação.
Por fim, diante de tais diretrizes e estratégias, espera-se poder construir um processo coletivo de preservação do patrimônio culturalmente diversificado, ecologicamente  equilibrado, socialmente responsável e institucionalmente compartilhado. Para tanto, podem ser formuladas ainda as seguintes questões:
1 – Como fomentar e garantir a continuidade de tais estratégias?
2 – Como dinamizar a articulação dos diversos entes da Federação e as instituições da sociedade com vistas ao compartilhamento e à co-responsabilização?
3 – Qual o papel do cidadão na preservação do patrimônio cultural brasileiro?
4 – Como fomentar os processos de identificação, documentação, proteção e promoção da diversidade de manifestações culturais?
5 – Como articular a preservação do patrimônio ao desenvolvimento urbano e regional sustentável?